‘Me formar virou um pesadelo’: os brasileiros endividados com o Fies
Vinícius Lemos – @oviniciuslemos Da BBC News Brasil em São Paulo O ingresso no ensino superior foi a concretização de um sonho, mas anos depois se tornou um pesadelo. Essa é a definição de Michele Pereira sobre o diploma de Administração que ela conquistou no fim de 2015. “Venho da periferia e, até então, ninguém tinha ensino superior entre os meus familiares mais próximos. Achava que a universidade seria a minha chance de crescimento profissional e financeiro”, declara Michele à BBC News Brasil. O pesadelo, diz ela, teve início há quatro anos, quando começou a ser cobrada para pagar as mensalidades do Financiamento Estudantil (Fies). Até hoje, Michele não pagou uma parcela sequer, pois argumenta que não teve condições financeiras para isso. Após se formar, ela não conseguiu trabalho na área em que se formou. Por não ter pagado o financiamento, as parcelas acumularam e o nome de Michele foi negativado. Casos como o dela não são difíceis de encontrar entre pessoas que concluíram o ensino superior por meio do Fies. A situação se tornou ainda mais grave em meio à crise causada pela pandemia de covid-19. Em julho do ano passado, o Fies teve o maior percentual de inadimplência da história: 54.3% dos contratos não foram pagos naquele mês, segundo o Ministério da Educação (MEC), responsável pelo programa. Atualmente há cerca de 1 milhão de inadimplentes com o financiamento, conforme a pasta — pessoas que estão com mais de 90 dias de atraso no pagamento das parcelas. Para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, é fundamental que o governo discuta formas para facilitar os pagamentos das mensalidades. O Ministério da Educação afirma, em nota à BBC News Brasil, que tem avaliado junto com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) “a publicação de nova renegociação de dívidas”. Porém, ainda não há previsão de quando isso ocorrerá. ‘Imaginava que sairia da faculdade ganhando R$ 7 mil’ Michele iniciou o curso superior em 2012, em uma instituição particular de Governador Valadares (MG). Era o primeiro governo Dilma Rousseff (PT) e o Fies estava no auge. Nesse período, o número de contratos disparou de cerca de 76 mil em 2010 para 732 mil em 2014. Quando ingressou no ensino superior, Michele trabalhava em uma cooperativa de crédito. Foi justamente por causa do emprego que ela decidiu cursar Administração, pois queria conquistar um cargo melhor no local. Sem condições financeiras para arcar com as mensalidades, recorreu ao Fies de forma integral. Os objetivos dela estavam traçados: concluir o ensino superior, conseguir um salário maior e pagar o financiamento sem impactar muito a sua renda. “Imaginava que sairia da faculdade ganhando uns R$ 7 mil. Me lembro que quando comecei no curso havia um banner que dizia que profissionais de Administração ganhavam de R$ 4 mil a R$ 7 mil”, comenta. Ela se formou quatro anos após ingressar no ensino superior. A realidade ao concluir o curso foi completamente diferente da que esperava no passado. Michele estava desempregada e precisava se dedicar integralmente ao filho recém-nascido. Quando começaram as cobranças do Fies, sequer cogitou pagar as parcelas. “Não tinha a menor condição naquele momento”, desabafa. Ela foi colocada no cadastro de inadimplentes. Quando o filho cresceu um pouco, Michele começou a procurar emprego. O nome sujo a impediu de encontrar vaga em uma área na qual ela sempre quis trabalhar. “Desde que eu era menor aprendiz, trabalhava em instituições financeiras, e sempre foi onde eu quis continuar trabalhando”, comenta. “Passei por etapas de entrevistas em instituições financeiras, mas esses lugares não me contratavam porque meu nome está com restrição. Isso é complicado, sequer dão a oportunidade de mostrar trabalho”, diz. Desde que concluiu o curso superior, ela passou cerca de três anos sem um emprego fixo. Hoje, Michele trabalha como vendedora. “Já fiz umas 10 entrevistas para diversos empregos relacionados à Administração, mas o meu nome sujo me impede de ser contratada. Só consegui trabalhos em outras áreas, mas queria mesmo era atuar na minha área, que é para a qual eu estudei e fiz vários cursos”. Ela não tem, ao menos por enquanto, previsão para pagar as parcelas que deixou para trás, que hoje estão em torno de R$ 15 mil. “Há juros em cima de juros e a dívida está cada vez maior”, diz. O contrato do Fies previa que ela quitasse R$ 43 mil referentes ao curso ao longo de 15 anos. “Valeu a pena me formar e ter um diploma de ensino superior. Mas isso virou um pesadelo quando terminei o curso e caí na realidade”, lamenta. ‘Hoje a gente vive decidindo se come ou paga a dívida’ No cenário da pandemia de covid-19, os pagamentos do Fies também foram afetados. Diante da crise sanitária, que impactou duramente a economia, a dívida do financiamento se tornou um duro problema para muitos. “Hoje a gente vive decidindo se come ou paga a dívida do Fies”, desabafa a fisioterapeuta Ilse Silva, de Recife, em Pernambuco. A mulher e o marido usaram o Fies para concluir o ensino superior. Ilse se formou em fisioterapia em 2017. O marido dela, Ivan, concluiu o curso de Engenharia de Produção em 2015. Os dois trabalhavam nas respectivas áreas em que se formaram. Nos primeiros anos, conseguiram pagar as mensalidades de R$ 460 de seus contratos do Fies, R$ 220 de Ivan e R$ 240 de Ilse. Em 2019, Ivan saiu do emprego para abrir uma empresa de automação residencial. Em março de 2020, ele precisou suspender o investimento, enquanto fazia treinamentos e após comprar equipamentos, por causa da pandemia. A situação ficou ainda mais difícil porque Ilse foi demitida. Ivan precisou buscar uma nova fonte de renda. Ele se tornou motorista de aplicativo para conseguir pagar as contas da família — o casal tem dois filhos, de 19 e 17 anos. “Nesse momento comecei a ajustar as contas e a escolher o que manter em dia e o que iria atrasar pela redução financeira em nossa casa. Então, estamos sem pagar o Fies desde