“Ciência”, em libras Léo Ramos Chaves Um grupo composto por docentes e egressos da Universidade Federal do Piauí (UFPI) se uniu para criar o Manual de libras para ciências, um e-book com representações em sinais de termos específicos sobre partes das células e dos sistemas do corpo humano. No Brasil, existem 10 milhões de pessoas com algum grau de surdez, o que representa cerca de 5% da população do país, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O problema se desdobra para além das dificuldades auditivas, porque a falta de estrutura especializada leva a uma deficiência de oportunidades desde a infância. Um estudo realizado pelo Instituto Locomotiva em conjunto com a Semana da Acessibilidade Surda, em 2019, demonstrou que a escolaridade média desse grupo está abaixo da média nacional. Segundo a pesquisa, 7% dos surdos têm ensino superior completo, 15% terminaram o ensino médio, 46% o ensino fundamental e 32% não têm nenhum grau de instrução. Na população brasileira como um todo, essas proporções são, respectivamente, de 16,5%, 26,9%, 8,1% (fundamental completo), 33,1% (fundamental incompleto) e 6,9%, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC) do IBGE de 2018. O primeiro volume do novo manual, A célula e o corpo humano, foi lançado em agosto e disponibilizado gratuitamente na internet. O e-book apresenta cerca de 300 novos sinais que não existiam antes na Língua Brasileira de Sinais (Libras), como “glóbulos brancos”, “ureteres”, “suco pancreático” e “meninges craniais”. O livro está dividido em partes do corpo (sistema circulatório, digestivo, respiratório, reprodutor, entre outros) e, para cada termo, apresenta o nome em português, a soletração em datilologia – representação em sinais das letras do alfabeto manual – e fotografias com os sinais sugeridos. A cada página, ilustrações e textos contextualizam os assuntos. Alexandre Affonso Sinal aberto Quando uma pessoa surda precisa lidar com termos técnicos que não contam com sinais específicos em libras, ela utiliza a datilologia. Ou seja, precisa soletrar com as mãos. “Em termos muito longos, isso é desgastante tanto para o intérprete como para o surdo”, afirma a bióloga Taiane Maria de Oliveira, que fez mestrado em biotecnologia pela UFPI e é uma das organizadoras do manual. “Dessa forma, o uso de um sinal específico vem como alternativa mais viável para auxiliar a comunicação de forma mais fácil e rápida”, defende. “Da totalidade dos sinais exibidos no manual, 85% ainda não existiam. Os 15% já existentes não modificamos”, afirma a pedagoga Ana Cristina de Assunção Xavier Ferreira, professora de libras na Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e uma das colaboradoras da obra. Ela diz que, devido ao tamanho continental do Brasil, é normal que surjam sinais dentro de comunidades de surdos que não se disseminam rapidamente. A inclusão no manual de termos já existentes pode, justamente, ajudar nessa divulgação. “Contamos com a parceria do fisioterapeuta Igo Rodrigues Ferreira para uma explicação contextualizada e direcionada sobre o conteúdo do manual, para que a explicação aos surdos fosse possível”, acrescenta, ressaltando que a equipe não tinha intimidade com muitos dos conceitos expostos. Justamente pela importância de a comunidade surda estar aberta aos novos sinais propostos, alunos surdos do curso de letras-libras da UFPI prestaram consultoria para o trabalho. “Foi imprescindível a participação deles”, afirma o biólogo Jesus Rodrigues Lemos, colaborador do manual. Ele conta que quando se faz qualquer material em libras, o trabalho precisa ter a parceria dos surdos, os principais interessados e usuários, pois só assim será aceito e validado na comunidade. “A ideia de criar o Manual de libras para ciências surgiu dentro do campus de Parnaíba, que é a segunda maior cidade do estado”, conta o cientista econômico Ricardo Alaggio, diretor da Editora da UFPI (EDUFPI), que publicou a obra. “A ideia se potencializou porque temos um curso de licenciatura em libras/língua portuguesa no campus de Teresina, um dos poucos entre as universidades federais”, afirma. “De início, a proposta do grupo de organizadores do manual era apresentar o material à Secretaria de Educação do Piauí para que fosse adotado pelas escolas estaduais, dando ênfase à versão impressa”, relata Ferreira. “No entanto, por causa do contexto atual da pandemia da Covid-19, tivemos que optar para o formato e-book, inclusive porque a editora estava com restrições ao trabalho presencial”, explica. Alexandre Affonso Segundo o biólogo Bruno Iles, um dos organizadores do livro, o manual foi criado para as turmas de oitavo ano do ensino fundamental. “É uma forma prática para que elas possam entender os sinais e usá-los durante as aulas”, diz. De acordo com ele, o mesmo conteúdo pode ser abordado em outras séries e até mesmo no ensino superior, porque ainda não há material similar no Brasil. A equipe do Piauí não foi a única a notar a necessidade de sinais específicos para surdos. O grupo da fisioterapeuta Nilza Nascimento Guimarães, da Universidade Federal de Goiás (UFG), investigou as dificuldades de alunos surdos no processo de ensino e aprendizagem de anatomia em cursos de graduação da área da saúde, por meio de entrevistas com docentes e intérpretes de libras. “Em todos os aspectos, alunos, professores e intérpretes concordaram que a maior dificuldade ocorreu pela falta de sinais específicos para a anatomia”, informa o artigo publicado em abril deste ano na revista Research, Society and Development. “A experiência em lecionar para alunos surdos me levou a criar uma linha de pesquisa nessa área”, conta Guimarães. “Percebemos que, por não haver sinais para a terminologia médica, a tradução pelos intérpretes tornava-se complexa e lenta. Ocorria um atraso imenso no tempo da aula e a aprendizagem dos alunos surdos era difícil, levando muitos a desistir dos cursos. Os entrevistados em nossa pesquisa relataram que realizar um sinal específico seria muito mais rápido do que usar datilologia.” A fisioterapeuta e seus colegas trabalham no desenvolvimento do Dicionário de sinalização tática de mãos para códigos e terminologia médica, que será um compêndio reunindo sinais já existentes e sugerindo outros. “Estamos investigando o que existe em outros idiomas e criando um banco de